A Torre da Grandeza no pior da sua Crueza - In « O Último F» - Autobiografia
Paris, nove de setembro de dois mil e dezassete, 21h07, João Afonso desce a rua que lhe hão descrito como La Grand Avenue para chegar a Torre Eiffel.
Senhor, conhece Paris? Não, é a minha primeira vez em Paris. A expressão de frustração de Elie não se rende à segunda questão, E não viu por aí uma igreja onde me possa dirigir? Não. O Senhor é Católico? Não. Cristão? Sou agnóstico, a religião é das piores coisas que o homem podia inventar... Elie dá uma palmada a Afonso no ombro com relativa força. Não soube João se por reprovação ao que ouvira ou se pretendia expulsar algo de mau no nele. Como se chama? João Afonso. Muito prazer, chamo-me Elie, sou de Aleppo na Siria, Antropólogo e professor de filosofia. De onde vens? Portugal. Ah, Fátima! Elie Intaká abriu o segundo botão da camisa, retirou o seu amuleto de madeira, um crucifixo com a mensagem pregada na cruz em árabe. Eu sou devoto de Fátima. E eu vivo a quatorze quilómetros de Fátima. Então como podes dizer que a religião é a pior coisa que o homem já inventou? Porque já sofri a minha quota parte por ela, porque provavelmente o senhor está a sofrer muito por ela, pelas guerras dela. Elie comove-se tremendamente, os seus olhos vivos que até ali queriam transmitir algo ficam baços. Se alguém lhe provasse das lágrimas que não consegue agora conter, imagina-se que seriam mais amargas do que as águas salgadas e agitadas que já terá atravessado até se cruzar com João Afonso, na Grand Avenue. Mas como podes tu ignorar Deus? Por Deus eu cheguei aqui, estou aqui a falar contigo. Eu não ignoro Deus, apenas deixei de me questionar o que ele quer de mim e de me permitir a que a sua vontade condicionasse a minha vida, porque isso não é ser Deus, condicionar os seus súbditos de forma tão cruel ao ponto de se acreditar que lhe devemos sacrifícios, ou a vida... eu não posso venerar um deus como o do velho testamento, que cometeu tantas atrocidades, tantas mortes, tanto sofrimento nos humanos. Só porque sim, porque quero, posso e mando. Esse não pode ser o meu deus com Dê grande, Quem é então esse teu Deus, que dizes que não ignoras? Deus para para mim não é uma preocupação, se existe ou não existe, se em corpo ou forma, espírito ou visível, se tem planos para nós ou não, isso não deve ser da minha preocupação. Eu vejo Deus nesta árvore que aqui cresce ao nosso lado, sinto Deus no frio da brisa que nos regela agora a cara, na força das tempestades que assolam os Estados Unidos, nos olhos da minha filha quando se decepciona comigo. Deus é toda a natureza que me envolve, e ela trata de me equilibrar, sem me pedir nada em troca, e por isso lhe sou grato, à Mãe Natureza, se quiseres, o meu Deus. Elie já não queria chorar, sorria, abraçou-se a João Afonso, beijou-lhe a testa e se afastou. Afonso queria deixá-lo partir, e pensou que Elie de facto queria partir, pelos hesitantes passos que deu, mas avançou de novo para João Afonso e pôs a mão direita no seu próprio peito esquerdo, e com os olhos novamente cheios de amargura o sírio voltou-o a indagar, Vou-te pedir um favor que nunca pensei vir a necessitar de pedir, o meu filho só me consegue fazer chegar dinheiro pela Western Union daqui por dois dias, e hoje tenho uma etapa fundamental , e que me aflige, porque todo o meu futuro depende de eu chegar a tempo, até amanhã a tarde a um amigo que me aguarda muito longe daqui, preciso de 52€ para o bilhete do comboio que me levará, e não tenho dinheiro para comer ou onde dormir há dois dias. Por isso procuro uma igreja e não a encontro, mas encontrei-te a ti, suplico-te, ajuda-me. Neste momento já choravam os dois e com voz embargada o português lhe explica, Não tenho esse dinheiro comigo, queria muito te ajudar, mas o que tenho no bolso é para as refeições dos próximos dois dias aqui em Paris e já é menos do que esperava, Quanto me podes dar? Vinte euros. Obrigado, respondeu Elie estendendo a mão. Afonso meteu a mão ao bolso donde lhe saiu um monte de cartões, recibos e algumas notas dobradas com a de vinte a cobrilas. Ao desdobra-la para lha dar aparecem as restantes de cinco euros num montinho generoso, Elie abana a mão e súplica por mais, os seus olhos fazem João Afonso esquecer tudo no momento e desdobra as restantes depositado-as na palma da sua mão, Vinte e cinco, trinta, trinta e cinco, quarenta, é tudo o que tenho Elie, e ficarei sem dinheiro para comer, mas tu ficarias pior sem ele, eu ca me arranjo. Mas Elie insiste, sem pronunciar uma só palavra, um só gemido, uma sequer expressão, abana a mão com firmeza e aquela mão lhe diz, Mais. No desespero da situação quando lhe ia a dizer e mostrar que, Elie, não tenho mais , de repente ao folhear os recibos e cartões que tinha ainda na mão aparecem mais algumas notas de cinco com que não contava e para estranha surpresa de João, mas não da de Elie. Quarenta e cinco, cinquenta, Quanto disseste que precisavas? Cinquenta e dois, depositou-lhe na mão estendida a última nota que tinha, Cinquenta e cinco. Elie deu dois passos atrás, uniu as duas mãos com o dinheiro ainda no meio delas elevo-as entre o queixo e o nariz em sinal de prece, e de cabeça inclinada para o céu soltou umas palavras incompreensiveis. Arrumou o dinheiro, e dirigiu-se a João Afonso abraçando-o de forma apertada enquanto lhe dizia, Deus te recompensará em dobro. Não te esqueças de mim, Elie intaká professor de filosofia, Aleppo. O portugês confirma-lhe que não o esquecerá, mas interrompe-o, Espera, quero uma recordação tua, uma foto, pode ser? E algo teu que possa trazer comigo. Como assim contigo? Um objeto, uma simples mensagem escrita num papel, o que queiras. Okay, assim terás.
O sírio ficou parado a olhar para João Afonso enquanto eu ele se afastava, soube disso porque depois de alguns passos desde que o deixará, João Afonso se havia voltado procurando saber a direção que o outro tomaria. Estava lá, no mesmo sítio com mão estática no ar despedindo-se, sorriu e Afonso devolveu-lhe um adeus e prosseguiu.
João Afonso dobrou a esquina com um turbilhão de emoções pois que não se entendia. O que fora aquilo, como é possível, que sorte será a deste homem? E lá estava ela, a grandiosidade de Eiffel. À volta ouviam-se falar demasiadas línguas, uma verdadeira Torre de Babel, que reza a história um dia deus a impediria, na tamanha ousadia dos homens quererem fazer uma torre que toca-se os céus, e confundido-lhes a língua, aos trabalhadores, deus vetou-lhes o feito. Parou obliquamente na direção dela. Acendeu o cigarro do momento, pois que se fumar mata, ao menos que cada cigarro seja uma vitória, uma contemplação, um celebrar da vida. Aquele era o da celebração de João Afonso a Elie. Durante dois minutos, permanece de pescoço torcido para o ar, não porque dê jeito aos pulmões para expulsar o veneno, mas para apreciar a crueza da obra, ferro puro, minerio velho, escória da mãe terra, e que um deus da engenharia soube conjugar. E assombra-lhe agora ao pensamento, Como pode a humanidade ser capaz de coisas tão grandiosas na mesma medida em que pratica as mais asquerosas? Apagou a beata na calçada de Paris.
Com Elie Intaká, sob a "Árvore de Deus"
in «O Último Fôlego» - Autobiografia